ENTREVISTA A JOÃO GOMES PEDRO, O HOMEM QUE REVOLUCIONOU A PEDIATRIA EM PORTUGAL
A medicina foi um destino, a pediatria uma paixão. João Gomes-Pedro continua a trabalhar dez horas por dia. Aos 77 anos, o professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e ex-diretor do Departamento da Criança e da Família do Hospital de Santa Maria mantém o entusiasmo na descoberta de cada bebé e a defesa intransigente dos direitos de cada criança. Em 2018, completou meio século de prática clínica pediátrica.
Deixamos-lhe, como sugestão de leitura deste mês, a entrevista de vida que deu à ‘Notícias Magazine’.
Na sala de espera não há apenas pais e filhos. Há também homens e mulheres com 30 ou 40 anos, que estão ali para pedir conselho e ajuda ou só para desabafar. Não ao médico enquanto figura institucional, mas à pessoa que os conhece e cuida desde o segundo dia das suas vidas. A porta do consultório está sempre aberta. Neste dia, para a rapariga que procurava conselhos sobre estágios em medicina, Gomes Pedro era o Professor. Personalidade marcante e incontornável da pediatria em Portugal, na investigação, na prática clínica e na Fundação Brazelton-Gomes Pedro, dirigida sobretudo à motivação de profissionais jovens e experientes dos vários quadrantes formativos que desejam continuar a apostar no seu investimento científico e clínico em pediatria. Uma conversa longa e pausada pelo percurso que é, sobretudo, «um caminho de maior felicidade para os nossos bebés». Porque os bebés já nascem a falar com o Professor.
Quando é que começou a interessar-se por bebés? Comecei a falar de bebés e de pediatria com Jácome Delfim, um grande pediatra por vezes esquecido e um bom amigo, que seria, mais tarde, meu padrinho de casamento. E, depois, com o pai da minha mulher, pediatra, apesar de não exercer a especialidade. Tinha no seu consultório a Coleção da Revista Portuguesa de Pediatria que publicava papers e tudo o que se fazia em Portugal.
Portanto, escolhe medicina já a pensar em pediatria? A medicina foi sempre o que quis seguir. Desde pequenino, por grande influência de meu pai, médico-cirurgião. Nunca tive dúvidas. A partir de certa altura, a pediatria tornou-se um destino. Os mais íntimos sabiam que tinha o sonho de singrar numa área que fizesse realçar os direitos da criança.
Porquê as crianças? Por uma questão de empatia. Embora não lidasse muito com crianças – não tive irmãos mais novos – sempre gostei de pessoas pequenas, afinal pessoas grandes, que nos desafiam a pensar e a sentir com elas. A criança influenciou-me, sobretudo, numa linha de orientação cultural, intelectual, política. No entanto, brincar com uma criança dá imenso gozo. Nesta idade, não me sinto cansado e creio que a razão principal é porque estou muitas horas a brincar com crianças ou a lidar com adolescentes.
Os pediatras precisam de ter traços especiais de personalidade? Depois de uma vida dedicada à criança, digo que sim. É preciso um determinado grau de inteligência emocional, uma mente aberta aos afetos, ao significado das coisas. Na metodologia clássica, o pediatra pesava, media, via o perímetro craniano, apalpava a barriga, fazia o exame neurológico sumário e era tudo. Pouco a pouco, com a ajuda da neurologia, da psicologia, das ciências afins à criança, foi possível começar a descobrir quem é cada criança. Todas as crianças são diferentes: na forma de reagir ao stress ou na forma de organizar a mente.
Quando acabou o curso, em 1965, estava prestes a ser pai. Com a paternidade, passou a olhar para a pediatria de outra perspetiva? O nascimento de um filho, ainda por cima quando o pai não é suficientemente maduro – só tinha 23 anos – é um marco decisivo e mudou essencialmente a minha sensibilidade. Pouco meses depois de ser pai, fui para a Guiné, para a guerra colonial. Lembro-me de aterrar, sair do avião, sentir o bafo de calor e pensar «não consigo ficar aqui nem umas horas». No mato não havia nada, mas eu organizei uma consulta específica para crianças e fiz questão de aprender a falar fula, porque desconfiava que o enfermeiro-tradutor não relatava tudo o que os pais me contavam. A mortalidade era elevadíssima, em dois anos «apanhei» duas epidemias de sarampo. A guerra, à qual pensei fugir, deu-me uma preparação brutal para a vida. Desde logo pelas saudades que tinha do meu filho Tiago, sempre presente nas minhas descobertas.
Porque não fugiu? A razão essencial foi a de saber do desgosto que causaria à minha mãe, com quem tinha uma relação muito forte. O não poder regressar a Portugal era um imperativo a par da responsabilidade de já ter uma família. Percebi também que seria o fim de uma carreira de médico em Portugal. Uma carreira sonhada. Por isso, decidi assumir a guerra.
A Guiné foi uma experiência importantíssima na minha vida. Percebi que a única maneira de não entrar em depressão era viver intensamente África e as suas diferentes culturas. Foi um tempo em que estudei e aprendi muito com as populações e com os meus companheiros de batalhão.
Na Guiné viveu seguramente momentos terríveis. Muitos. Surgiram-me, no posto clínico de Farim, três soldados com queimaduras extensíssimas, provocadas pela explosão de uma mina, que se agarraram a mim, a gritar de dor, chamando pelas suas mães, pedindo-me aos gritos que não os deixasse morrer.
Pediatria, a carreira sonhada. Fale-me dos primeiros tempos dessa carreira. Tenho pensado nisso, agora que tenciono deixar a clínica, em 2018. Lembro-me da minha primeira consulta privada. Vi a primeira criança, uma rapariga com 7 anos, numa clínica da Baixa, onde trabalhavam vários médicos à espera que alguém batesse à porta. Um dia, entrou uma senhora à procura de um pediatra. A miúda tinha umas manchas, talvez alergia. Vi-a mais uma ou duas vezes. Nessa altura, a pediatria ia apenas até aos 10 anos, mas não me importava. Passei a ver crianças muito mais velhas. A adolescência ganhou um capítulo essencial da pediatria que na altura não tinha. Foi em 1968, já vão lá 49 anos. O pediatra era um médico que aplicava apenas a metodologia clássica.
Como reagiu o meio clínico e universitário a esses ventos de mudança? Não tive vida fácil. Lembro-me de ser interpelado em Conselhos Científicos da Faculdade de Medicina de Lisboa por colegas que me diziam que os alunos estavam ali para aprender medicina e já era muito. Aos quais respondia que não bastava, porque 80 por cento do tempo importante de uma consulta era para falar de comportamentos, atitudes, decisões educativas, intervenção precoce, etc. Valeu-me na altura ser já professor catedrático. Caso contrário, teria sido dizimado.
Imagino que um pediatra, mais de que qualquer outro médico, deva ser massacrado com pedidos de auxílio fora de horas. Que limites estabelecia? Nenhuns. Vivia a vida dedicado à pediatria. Recebia chamadas telefónicas a toda hora. Olhe, recordo-me de uma, às seis da manhã. «Doutor, parece que vai estar sol, acha que ponha um chapéu à menina logo de manhã?». Outra, de uma mãe que liga à hora de jantar muito aflita porque achava que a Ritinha tinha engolido uma lagarta da couve. «Ótimo, são proteínas, não se preocupe». São centenas de histórias destas. Sempre disse aos pais que podiam ligar a qualquer hora.
Os pais podem ser um entrave? Como era a relação com os pais? No princípio achei um bocadinho difícil lidar com os pais, confesso. Mas no curso ligado à pediatria que pratiquei no Royal College of Physicians (Edimburgo, Escócia), onde aprendi a fazer uma intervenção centrada na família, logo percebi que saber lidar com pais era algo essencial para ser um pediatra exigente e atualizado. Nessa altura, apareceu o Berry Brazelton na minha vida. A partir daí tudo passou a ser paixão. Quando Brazelton nos começou a ensinar a descoberta do bebé e a descoberta da família e a intervenção na parentalidade passou a prioridade, tudo se tornou mais fácil, claro e coerente. Hoje, quando falamos em «touchpoints», a abordagem teórica e prática de um modelo de desenvolvimento perspetivado em torno de momentos chave, focados no bebé/criança e centrados na família e que visam potenciar a competência parental na construção da relação pais-filhos e criar uma aliança entre os pais e os profissionais que fazem parte do seu sistema, queremos dizer basicamente que para alcançarem melhores resultados, as crianças precisam de ter pais convictos das suas competências e capacidades.
Chegou-se aos anos 1960 a pensar que as crianças se educavam na rigidez. Que a afetividade era uma fraqueza. Defendia-se uma certa austeridade emocional. Influências culturais da sociedade americana que pretendia formar cidadãos rígidos, normativos, tendência que contaminou, embora em menor escala, a Europa. A pediatria moderna nasceu das ciências afins da medicina, ainda hoje vive e embebe-se do essencial das disciplinas complementares da medicina – a psicologia, a antropologia, a sociologia, a educação e outras. Ora, nos cursos de medicina não se aprendia nada das ciências afins da medicina. Aprendia-se doença, diagnóstico, terapêutica. Fiz um curso de medicina sem que ninguém me tivesse falado em Platão, Piaget, Jean-Jacques Rousseau, Mary Sheridan. Já sentia isto – e daí ter ido para Edimburgo – antes de conhecer o Berry [Brazelton].
Como se conheceram? Através de um ou dois papers e das primeiras publicações dele. Pessoalmente, em 1969/70, no Estoril Sol num evento onde estavam grandes nomes mundiais da pediatria. Consegui furar e dizer-lhe que queria falar com ele. Quando trabalhei em Londres, no hospital, comecei a perceber a importância de avaliar de outra maneira os bebés de cinco ou seis meses. Instintivamente, mas também com alguma coerência, estava já meio maduro para a descoberta das coisas que o Brazelton trouxe.
Deu orientação a muitas famílias. Como foram evoluindo ou mudando as grandes perguntas, angústias, stresses? A evolução foi brutal, no bom sentido. Durante anos, a maior parte do tempo de cada consulta não era para tratar da tosse ou da infeção da criança mas para responder a perguntas ligadas à educação, à creche, ao apetite, aos tempos de jogo e brincadeira. Com a quebra dos índices da natalidade, a criança passou a ser algo dourado na vida dos pais. E as preocupações essenciais passaram a residir nas questões de saúde e a incidir na intervenção preventiva. Por fim, chegaram as dúvidas relacionadas com o comportamento. Tive de começar a estudar psicologia e educação.
A visita ao pediatra, durante décadas, foi «coisa» das mães. Hoje, a descoberta e o cuidado são partilhados. É muito raro não vir o casal. Comparando com antigamente, as diferenças são múltiplas e uma muito importante é a consulta pré-natal. Através da ciência e dos touchpoints propostos por Brazelton as competências do bebé passaram a ser de tal maneira conhecidas que os próprios pais se adaptaram. O pai passou a ter um papel tão importante e significativo como o da mãe.
Fale-me da consulta pré-natal. Até à década de 60, viam-se na maternidades os bebés enrolados no cobertor, com os olhos fechados para fugirem ao trauma provocado pelas luzes das salas de parto, aos gritos, mostrando já aí a sua competência. Chegou-se então à conclusão de que era importante uma consulta pré-natal de pediatria. Pois se no último mês de vida intra-uterina, o bebé já vê e já ouve, já distingue a mão da mãe da mão do pai, entre outras competências, por que razão não deveria ter direito a uma primeira consulta ainda antes de nascer? Foi um pequeno nada que fez uma grande diferença na descoberta de uma nova pediatria que se foi construindo a partir dos anos 1970 e que tem evoluído até ao impensável.
Em que consiste uma consulta pré-natal? A consulta pré-natal começou a ser feita nos anos 1980, pode durar uma a duas horas e, no meu caso, nunca cobrei por ela. Durante anos pensou-se que o desenvolvimento do bebé era uma linha contínua. Mentira. No modelo que nos inspira, o desenvolvimento é feito de crises e consiste essencialmente numa tarefa convergente. No último trimestre, os pais estão já muito stressados. Têm na cabeça o bebé que come bem, que não chora, que sorri para os pais e adormece facilmente, mas também o bebé que pode nascer com problemas, que pode gerar uma crise. E são esses momentos de crise que, por antecipação, precisam de ser regulados.
Hoje, qual é o foco da investigação na pediatria? O foco dominante é a neurociência. A neurociência veio trazer uma fundamentação científica àquilo em que acreditávamos. Os trabalhos de Brazelton mostravam que um bebé com dois dias de vida podia responder à luz, orientar-se para a esquerda e direita, o que nos permitia dizer que já vê e já ouve. Mas não havia um procedimento científico. A neurociência trouxe-nos, passados quarenta anos, a fundamentação. À nascença, e após uma superprodução nos últimos dias de gravidez, o bebé tem cerca de 100/150 biliões de neurónios. Ora essa super produção neuronal só podia ter cabimento e explicação se servisse para alguma coisa. Essa alguma coisa foi a forma como os bebés passavam a conhecer a sua mãe, o seu pai, os seus irmãos, os seus avós.
Em contrapartida, como pode uma mãe ou um pai distinguir o filho? Nas maternidades vemos filas de bebés, todos enrolados e deitados da mesma maneira. Parecem pães prontos a entrar no forno, não é? Costumava fazer essa pergunta aos meus alunos. Como distinguir cada um dos bebés? Uns respondiam que era pela auscultação, outros que seria pelo exame neurológico. Não, se não houver patologias, não se distinguem. Só há uma forma: pelo comportamento. A maneira como o bebé tem stress, se tem tremores, mudanças bruscas da cor da pele, etc. Cada bebé procura responder ao stress levando mão a boca para, chupando, sossegar o seu stress. Através da NBAS (Neonatal Behavioral Assessment Scale), podemos conhecer como é que cada bebé se organiza mediante o stress, quantos tremores tem, quantas vezes leva a mão à boca. Um bebé stressado pode ter quatro, cinco mudanças de estádio. Se a mãe for heroíno-dependente, no mesmo período de tempo, pode ter 60 a 70 mudanças. Quando comecei a fazer pediatria, o bebé nascia e podia ficar afastado da mãe e do pai durante dez, doze horas. Ora, o namoro tem de começar logo.
Numa sondagem recente, a maioria dos inquiridos considerava as mães mais aptas que os pais a tratar dos filhos. É um machismo como outro qualquer. Mãe e pai podem e devem fazer exatamente a mesma coisa. São ambos capazes.
Defende a licença parental obrigatória? Obrigatória em termos de disponibilidade.
Recebe muitas crianças filhas de dois homens ou de duas mulheres? Começo a ter. O que é importante é valorizar a globalidade do desenvolvimento da criança. Dois pais ou duas mães constituem com o seu bebé uma família. E a noção de família é importante e potencia o conhecimento e o desenvolvimento a criança. Por isso, falamos hoje em Ciências do bebé e da família, das famílias. Família é onde existe afeto partilha, e descoberta. A neurociência mostra-nos bem como a felicidade é construída quimicamente. Hoje, o bebé tem oportunidades de liderar o processos da interação dos seus pais consigo. De orientar os pais nessa interligação. De ser o líder.
Como assim? «Olá, bebé, olá, meu querido», diz a mãe. À segunda repetição, o bebé já ouviu e responde-lhe «já me ensinaste isso, diz outra frase, atira outra coisa». Ou seja, vai puxando pela mãe. Veja-se a importância que pode ter o «still face» (efeitos de uma ausência de comunicação induzida artificialmente para efeitos de investigação).
Os pais pedem ao pediatra filhos saudáveis. E filhos felizes? Em 1982, Brazelton dizia que 82 por cento do tempo de consulta era usado a falar de comportamento e de afetividade. Hoje, eu diria que essa percentagem subiu para 90/95 por cento. O grande objetivo continua a ser a felicidade.
Qual é o conselho mais importante que se pode dar aos pais? Que vivam sem ansiedade. Os pais são os grandes mestres da natureza e da características do seu bebé. A atitude fundamental do pediatra é dar confiança e potenciar a paixão entre os pais e o seu bebé.
Qual é primeira pergunta que faz aos pais que entram aqui pela primeira vez? O que aconteceu ao bebe até esse momento. Ainda hoje tive uma consulta pré-natal. É uma consulta de que gosto particularmente porque sei que a longo prazo tem um significado extraordinário.
Nem tudo são rosas. Há bebés e crianças difíceis. Como se resolve uma birra? Brazelton fala-nos em «love and limits». Garantir amor. Mas também faz parte desse amor não haver permissividade completa. O bebé ou a criança têm de reconhecer os limites. Os pais não podem fazer de cada dia uma guerra aberta. Não podem estar 80 por cento dos dias fingindo que não veem e, nos restantes 20 por cento, ficarem fora de si. É preciso que se ponham de acordo em pontos essenciais. Não se cospe na sopa, não se bate na avó e nem se põe o dedo em tomadas. E aí o bebé ou a criança – que tendem naturalmente a desafiar os pais para estabelecer o lugar deles no puzzle – não podem vencer.
O que fazer quando a criança insiste? É preciso perceber o que está para trás, quando e por que razão se gerou o problema. A arquitetura cerebral diz-nos que os primeiros dois dias de vida são decisivos, fundamentais para percebermos o que vai acontecer mais tarde. Há uns anos fizemos uma experiência com dois grupos de mães, destinada a comparar intervenções diferentes. No grupo de controlo, clássico, prestavam-se as informações de rotina, habitais, em sete minutos, que é o tempo que normalmente dura essa comunicação. No grupo experimental, e nos mesmos 7 minutos, falou-se de comportamentos. Nove anos passados, as mães do grupo experimental lembravam-se das palavras que tinham ouvido aos pediatras nesses sete minutos. Sabiam de cor o que o pediatra nove anos antes lhes tinha dito aos segundo dia de vida do filho. E foram percebendo melhor o seu bebé, mais ou menos concentrado, mais ou menos alerta, mais ou menos vigil. O papel do pediatra é descobrir, através dos sinais, quem é cada bebé e cada família. É isso não é fácil.
Um bebé resiliente terá maiores probabilidades de vir a ser um adulto resiliente? Na consulta pré-natal, abordarmos o temperamento e a personalidade do bebé. Tentando estabelecer aquilo em que vai precisar de ser ajudado e aquilo que vai dominar a mestria do bebé reforçando a parentalidade. Pontos que serão desenvolvidos na primeira consulta pós-natal, já mediante o que o pediatra sabe do bebé. Nasceu um bebé há dois dias e quero vê-lo hoje ou amanhã. Para começar o mais depressa possível a perceber quem é aquela pessoa. Somos o resultante de duas forças fundamentais. Da genética, força indomável; e da epigenética, que é o que passa à volta do mundo da criança. Mas direi que um bebé concentrado terá mais probabilidade de ser aos cinco, seis anos, uma criança auto-regulada e com maiores índices de concentração.
Várias mães de crianças acompanhadas por si dizem que é capaz de fazer parar o choro de qualquer bebé. Uma espécie de feiticeiro. Os meus colaboradores também brincam comigo. Tirando o choro de fome (aí não há quem os cale), consigo uma mudança do estádio 6 do choro para um estádio 4 de vigília. E não há dificuldade. O choro de cada bebé tem uma melodia, uma frequência: falhadas algumas manobras, como segurar-lhe nas mãos, tento encaixar-me na melodia do choro dele. E ele percebe, identifica e para. É, portanto, uma linguagem. O último livro de Brazelton chama-se Aprender a escutar. Por vezes, o bebé apenas está a pedir que o deixemos ir ao estádio um e dois de sono. E a dizer-nos que depois volta para conversar de novo connosco. É uma linguagem que introduz uma nova semiologia, que é o estudo dos sinais e dos sintomas.
Já passaram por este consultório muitos pais exaustos. Milhares de histórias. Recordo uns pais com um bebé com duas semanas e meia de vida. Percebi que já tinham ido ao centro de saúde, a duas Urgências, a dois ou três pediatras, a um neurologista e a um pedopsiquiatra. O pai entrou com o bebé ao colo, completamente transpirado. O bebé tremia, chorava e o pai saltava, tentando acalmar o filho. Ambos muito preocupados porque diziam que o filho estava em enorme sofrimento. O bebé tinha realmente uma agitação motora muito forte, os membros superiores muito descontrolados. Peguei nas mãos do bebé e amparei-as entre as minhas. As mãos deixaram de tremer e o bebé parou de chorar. Aquele bebé precisava apenas que lhe controlassem a desorganização motora própria do «touchpoint» vivido.
Há com certeza casos muito complicados e de insucesso. Há situações muito aflitivas, resultado de erros da terapêutica e de diagnósticos que se revelaram muito mais complexos.
Hiperatividade e défice de atenção são problemas sobrediagnosticados ou não? Há a tentação muito grande de meter as coisas em sacos. No saco está escuro, está quietinho, não chateia. Esses diagnósticos são muito complicados. Nuns casos estão sobrediagnosticados, noutros subdiagnosticados. Concluindo, regra geral, estão mal diagnosticados. Não é que a ritalina tenha efeitos colaterais muitos graves. Mas até as aspirinas, em podendo, devem evitar-se. É importante que o pediatra explique aos pais que o padrão normal de uma criança de 3 ou quatro anos é de hiperatividade. Fico preocupado quando me dizem que está sossegadinho e nem quer brincar.
A propósito, a expressão «ar de doente» tem validade? O pediatra é muito sensível ao aspeto geral. Podemos examinar uma criança e não encontrar nada, mas há coisa que nos diz que ela não está bem. E por vezes é o suficiente para não a mandarmos para casa. Essa experiência só se ganha nos bancos de urgência.
Encontra muitas crianças tristes? Encontro muita tristeza, encontro muito stress, muita depressão, muita exaustão.
Os pais estão sensibilizados para ideação do suicídio? Quando o problema lhes é explicado de uma forma afetiva e esclarecida. A primeira coisa a saber é o que passou um, dois, quatro ou seis anos antes. Conversar com os pais sobre eles próprios – pais deprimidos são pais que não criaram oportunidades de vínculo com o bebé. É preciso saber quem é aquela criança, qual é a sua história nos primeiros meses de vida.
Obesidade – é fácil convencer os pais de que uma criança tem de fazer dieta? Muito da patologia alérgica, muito da hiperatividade e défice de atenção pode ser previsto, com a descoberta do bebé recém-nascido. É uma questão hereditária e também da epigenética. Uma criança de oito ou nove anos que depois de horas na escola vai para casa fazer os trabalhos de casa, que não tem com quem brincar, tem mais tendência para procurar comida.
Os índices de mortalidade infantil em Portugal são dos mais baixos da Europa. O que mais o preocupa, neste momento? A invasão do stress na nossa sociedade e de uma maneira especial quando fica projetado na vida de cada bebé, criança, jovem e família. Os indicadores de stress na nossa sociedade determinam o risco. Só para citar um exemplo, Portugal tem a taxa mais alta da Europa em separação e divórcio. É verdade no que diz respeito à mortalidade, mas também é preciso atender a outros dados e índices. A outros sinais. Nem tudo está bem.
Acompanha filhos e pais durante quinze anos, por vezes mais. Que ligação estabelece com esses miúdos? Muito especial. É um vínculo que fica para sempre. É rara a semana em que não vêm aqui adultos, 30, 40, 50 anos, que conheço desde bebés, apenas para falarem comigo. Durante a adolescência, a relação do pediatra entra numa nova fase afetiva e intelectual. Estabeleci no meu consultório uma «via verde». Sabem que podem vir quando quiserem. Já não serei pediatra mas contactam-me para pedir conselhos, falar de namoradas e namorados, dúvidas em relação ao curso, o que quiserem. O afeto fica para sempre. Hoje, tenho uma menina que quer falar comigo sobre estágios em medicina. Foi vista por mim toda a vida. Passei a criar uma nova identidade a que chamo o «Pediatra da Família».
Como médico, lidou também com a perda. Uma criança muito doente percebe que vai morrer? A criança tem perfeita noção do que é grave e do que não é grave. Por vezes deixam sair os pais e, a sós comigo, perguntam-me se vão morrer.
O que lhes responde? Que ninguém sabe. E que, aconteça o que acontecer, terão sempre a família e ter-me-ão sempre a mim, disponível para responder a todas as perguntas.
Foi o pediatra dos seus filhos e é o pediatra dos netos? Não era. Mas passei a ser depois de um susto com o meu filho mais velho. Um colega muito competente diagnosticou-lhe uma gastroenterite e estando nós longe de Lisboa mandou-me esperar em casa. Às seis da manha do dia seguinte, o meu filho entrou em choque sético e, apesar de não querer melindrar ninguém, obedeci ao coração e à cabeça, levando-o para a urgência do Hospital Santa Maria.
Quase 50 anos depois, qual é o maior orgulho? Ter sido um médico total, um médico humanizante, humanizado, interessado por cada família. Tenho histórias inesquecíveis. Ainda hoje, há avós que vêm aqui com os netos a quem eu descrevo as salas das suas casas, a cor das estantes, a cor dos sofás. Eles ficam admirados. Naquela época, acabava o consultório às 10, 11 da noite. Depois, até às quatro da manhã, percorria Lisboa. Passados 30, 40 anos, lembro-me daqueles lugares, daquelas famílias. Ir a casa de uma família preocupada à uma da manhã é custoso mas é também muito especial.
Nessas visitas fazia apenas pediatria ou também clínica geral? Desde que entrei no internato de pediatria passei só a ver crianças.
Não era a chamada visita de médico. Nunca. Conhecia bairros de cor. Por exemplo, o bairro da Graça. Prédios de dois andares sem campainha. Batia-se na porta consoante o andar, numa espécie de código.
Aceita ser chamado de pai da pediatria nacional? Prefiro dizer que fui o pai de alguns movimentos que foram significativos e que, em alguns aspetos, mercê da sorte, da vida e de ter encontrado o meu mentor, Brazelton, estive um bocadinho à frente. Não quero, nem posso, ser agressivo para os meus colegas que funcionam tão bem ou melhor do que eu.
Jubilou-se há sete anos mas continua a exercer. O que o mantém ativo? As crianças. Gostar do que faço. Vou publicar dois livros em novembro, por ocasião de um encontro internacional, livros sobre o bebé e a criança, como todos os outros, que estão esgotados.
Quantas horas por dia ainda trabalha? Nove, dez horas, parte deste tempo dedicado à Fundação Brazelton/Gomes Pedro para as Ciências do Bebé e da Família.
Como olharia o pai cirurgião para a carreira do filho? O meu pai nunca foi um homem de investigação, mas era um médico competente, que fazia a chamada cirurgia geral. No princípio da vida, teve de dar explicações porque os meus avós não tinham muitas posses. O meu avó, contínuo do Liceu Camões e a minha avó, que fazia comida para fora, conseguiram formar dois filhos. O meu pai em Medicina e o meu tio em Ciências Económico-Financeiras. Sei que o meu pai olharia para mim com orgulho, o mesmo orgulho com que dizia as minhas notas às enfermeiras do hospital. Não tive vida fácil. Foi muito duro. Fazer a carreira académica e a carreira hospitalar ao mesmo tempo é de uma violência enorme.
Formou-se com que média? 17,4, média boa atendendo a que tinha várias vidas. Estava integrado nos católicos de esquerda, tinha reuniões culturais, organizei por exemplo a Grande Exposição do Livro Católico Cientifico, aprendi – e ainda escrevi um ou dois textos sobre – cinema. E fazia atletismo.
No CDUL? Exatamente. Recordo-me de competir nos 700 metros com atletas do Benfica, do Sporting e do Alverca e de ter resistido a tantos encontrões que o Prof. Moniz Pereira escreveu um artigo em que dizia que o jovem João Gomes-Pedro podia ir longe.
Nasceu em 1939. Que bebé, que criança foi? Tive uma formação um bocado machista porque fui criado rodeado de mulheres. Duas aias que vieram da Beira-Alta e que passaram a ser da família e a minha avó materna, que vivia connosco, e que era outra ama. Era, conta-se, um miúdo curioso e atento. De infância, tenho uma imagem marcante. No meu primeiro dia de aulas, um dia 6 de Outubro, dia também do meu aniversário, a minha mãe acompanhou-me à porta da aula, numa escola pública perto da Praça do Chile, em Lisboa. Com a minha mãe ainda à porta, o professor gritou «saudação». E eu vi pela primeira vez aqueles 30 meninos de braço levantado e esticado. Foi em 1945. Só mais tarde percebi o alcance daquele gesto terrível.